quinta-feira, 6 de junho de 2013

Isabel Coutinho

Se você, leitor, assistiu ao filme Afirma Pereira, com o grande, o insubstituível Marcello Mastroianni no papel de um velho jornalista lisboeta, e se emocionou como eu, há de gostar de ler esta crônica que transcrevo do jornal português "Público":

Sardinhas decapitadas

Quando penso no escritor ital­iano Anto­nio Tabuc­chi, vem-me à memória a imagem de Mar­cello Mas­troianni, solitário, sen­tado num banco de uma estação de com­boios por­tuguesa enquanto esper­ava a ordem do real­izador, Roberto Faenza, para que entrasse em mais uma cena de Afirma Pereira.


O filme foi rodado em Por­tu­gal em 1994 e o jor­nal enviou-me, em reportagem, para as fil­ma­gens. Não me lem­bro se tro­quei com Anto­nio Tabuc­chi impressões sobre essa memória indelével que me ficou de Mas­troianni inter­pre­tando o velho jor­nal­ista do ves­per­tino Lis­boa, mas, sem­pre que abro uma lata de sardinhas, lembro-me do escritor ital­iano. É que devo a Anto­nio Tabuc­chi uma das ima­gens mais fan­tás­ti­cas que alguém já me deu da gas­trono­mia por­tuguesa.

Essa rev­e­lação acon­te­ceu em 1996, quando falei com ele por causa de um artigo para a revista de domingo do PÚBLICO sobre Alexan­dre O’Neill (1924–1986), de quem o ital­iano era muito amigo (o artigo chamava-se O Homem que tropeçava de ter­nura, foi pub­li­cado a 18 de Agosto de 1996).


Tabuc­chi contou-me que veio a Por­tu­gal em 1964–65 quando prepar­ava uma tese sobre a poe­sia sur­re­al­ista por­tuguesa e, no bolso, trazia moradas de int­elec­tu­ais por­tugue­ses. Um deles era o poeta Alexan­dre O’Neill. “Cheguei a casa dele e toquei à porta. Lev­ava uma carta de uns ami­gos ital­ianos. Alexan­dre estava a comer sardinhas em con­serva. Encontrava-se soz­inho em casa. Perguntou-me: ‘Queres comer sardinhas decap­i­tadas?’”, con­tou o escritor que traduziria depois para ital­iano poe­mas de O’Neill numa antolo­gia a que chamou Made in Por­tu­gal. Tal e qual como as sardinhas.


Nessa altura, Tabuc­chi lem­brou que era habit­ual um grupo de ami­gos reunir-se em casa de O’Neill para comer uma sardinhada. Depois, até às três da manhã, dis­cu­tiam lit­er­atura. Alexan­dre pegava nos livros de Guimarães Rosa e de João Cabral de Melo Neto e lia alto. “Lia de uma maneira mag­ní­fica, esplên­dida, com muita inten­si­dade. Ficá­va­mos ali a dis­cu­tir e, às duas da manhã, prop­unha: ‘Vamos comer bacal­hau com grão?’ — e lá se ia até ao Mer­cado da Ribeira.” Era uma época em que Lis­boa tinha tas­cas onde se podia comer por módi­cas quan­tias.


Tabuc­chi recor­dou tam­bém uma tarde pas­sada num piquenique: “Fomos fazer um piquenique nos arredores de Lis­boa, em Agosto. Ao pé de uma capela onde os ciganos se cos­tu­mam reunir para dar a bênção aos ani­mais. Fica num pin­hal muito bonito. O Alexan­dre era muito boémio e gostava destas ciganadas. Naquele dia, estavam o pro­fes­sor de História de Arte Hel­mut Wohl, a sua mul­her Alice e o poeta Ruy Cinatti, que fez um número teatral mag­ní­fico. A certa altura, aproximou-se uma cigana que lhe começou a ler a sina, falando uma lín­gua incom­preen­sível. E o Cinatti começou a con­ver­sar com ela num dialecto dele, que era com­ple­ta­mente inven­tado, e falaram durante meia hora. Pare­cia que os dois se enten­diam per­feita­mente.” 


Os anos pas­saram. Lis­boa não é a mesma. O’Neill, Mas­troianni e Anto­nio Tabuc­chi par­ti­ram. Mas as suas histórias ficam.

(Crónica Porque hoje é domingo, pub­li­cada na revista 2, no dia 1 de Abril de 2012)

Transcrito do Blog Ciberescritas (04/06/2013) 

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