sexta-feira, 31 de maio de 2013

Para a Hora do Chá


Adiamento

   Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...  
   Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,  
   E assim será possível; mas hoje não...  
   Não, hoje nada; hoje não posso.  
   A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,  
   O sono da minha vida real, intercalado,  
   O cansaço antecipado e infinito,  
   Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...  
   Esta espécie de alma...  
   Só depois de amanhã...  
   Hoje quero preparar-me,  
   Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...  
   Ele é que é decisivo.  
   Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...  
   Amanhã é o dia dos planos.  
   Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;  
   Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...  
   Tenho vontade de chorar,  
   Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

   Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.  
   Só depois de amanhã...  
   Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.  
   Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...  
   Depois de amanhã serei outro,  
   A minha vida triunfar-se-á,  
   Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático  
   Serão convocadas por um edital...  
   Mas por um edital de amanhã...  
   Hoje quero dormir, redigirei amanhã...  
   Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?  
   Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,  
   Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...  
   Antes, não...  
   Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.  
   Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.  
   Só depois de amanhã...  
   Tenho sono como o frio de um cão vadio.  
   Tenho muito sono.  
   Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...  
   Sim, talvez só depois de amanhã... 

   O porvir...  
   Sim, o porvir... 

Fernando Pessoa

Um comentário:

  1. Pessoa coloca em magníficos versos o pensamento de muitos de nós, que empurramos com a barriga decisões e atos que transferimos quase para o dia de São Nunca...

    Grande F Pessoa!

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