quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Poema da Tarde


O Ovo e a Galinha

I
Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária, 
maciçamente ovo, num todo.
Sem possuir um dentro e um fora, 
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.
No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo, 
a mão que o sopesa descobre 
que nele há algo suspeitoso:
que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.


II
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras 
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra 
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar 
de pura forma concluída, 
não se situa no final:
está no ponto de partida.


III
A presença de qualquer ovo, 
até se a mão não lhe faz nada, 
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.
O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada. 
A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.


IV
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem 
conduz uma coisa repleta.
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem 
nas mãos a chama de uma vela.


 João Cabral de Melo Neto

Recife, 09/01/1920/ Rio de Janeiro, 09/10/1999

3 comentários:

  1. Está aí o João Cabral para infirmar que nem só o lírico é poema, e dos bons.
    Quem não se sente mexido diante de tão criativas divagações sobre o ovo. Só o poeta para constatar que o ovo está "no começo" (da vida, claro) e o seixo rolado, tão parecido com ele, está "no fim" do processo que o bruniu... "mãos escultoras escondidas na água, na brisa".

    Há muitos anos conheci, em meu escritório, no Rio, um pintor em plena fase do ovo. Foge-me, agora, o nome dele. Estive em seu ateliê, no Leblon. Quanta representação ovípara, meu Deus! Muitos ovos trespassados por coordenadas geométricas... Instigante! A gente chega a levar uma mão ao móvel mais próximo para não perder o equilíbrio.

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  2. Maria Helena,
    dê um toque no pessoal do Blogspot: os símbolos que eles oferecem para autorizar a remessa não precisam ser de tão difícil leitura.

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  3. Querido Zé do Carmo, não sei onde reclamar. Estou aqui descabelada e angustiada e não atino com a maneira de ser atendida. Mas vou continuar tentando! Um beijo e obrigada pelo cuidado. MH

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