O significado das palavras não é fixo no tempo e no
espaço. O processo através do qual, ao longo do tempo, o senso
comum vai atribuindo diferentes significados aos termos é
complexo e sua dinâmica é intensa e contínua. Trata-se de um
processo social e como tal pode ser entendido como uma construção
em andamento, uma obra em progresso.
Recentemente, por inúmeras razões que não
podem ser reduzidas aqui a uma lista exaustiva, algumas palavras
vem ganhando importância no vocabulário cotidiano. Esses termos, de
tanto que são usados, acabam se separando de seus significados, que
ainda que não sejam únicos e fixos são essenciais para que deles sejam produzidos os conceitos que precisamos para explicar a
realidade.
Uma palavra que serve de exemplo para mostrar o
esvaziamento resultante da separação da palavra e o significado que
o senso comum atribui a ela é "transparência". Hoje lemos
e ouvimos essa palavra varias vezes por dia e parece que a imprensa
a utiliza exaustivamente com a finalidade de reduzir a alguma coisa
que tem um valor intrínseco, de forma que a pessoa ou organização que não a possui se sente envergonhada. É como ser feio, ou defeituoso, ou
fora de moda.
Assim, reduziu-se o sistema de gestão coletiva de direitos autorais de execução pública de música a uma única questão vital: ser ou não ser transparente. Possui, ou não, esse atributo? Não possui? Será então punido, ficando sob a supervisão de um órgão do Poder Executivo, que nada sabe a respeito da complexa atividade de gestão coletiva de direitos de execução pública, que não esclarece, nem define ou dialoga a respeito do significado do termo transparência, muito menos questiona a compreensão do termo pelo órgão responsável pela supervisão, sua aplicação, gestão coletiva de direitos autorais e à atividade do órgão de supervisão.
Uma palavra vazia de significado, utilizada à exaustão em um discurso
também vazio de significado, se transforma em dogma que ninguém
explica, mas justifica a adoção de um plano, traduzido em forma de
lei imposta de cima para baixo, que pretende forçar a estrutura e a
máquina existente e em funcionamento através de um Escritório
Central – Ecad – que tem o monopólio da atividade estabelecido por
Lei, a se comportar de uma certa maneira que a nova lei determina ser transparente e eficiente.
No entanto, ninguém sabe, ninguém explica
por que passaria a ser transparente e eficiente e por que o sistema
existente e em funcionamento não o é e por isso tem de ser punido.
Eis que a Senhora Transparência vai ao encontro da colega Competição com
o seu dogma ultra-liberal da concorrência e juntas decidem submeter
os criadores e demais titulares de direitos autorais de música aos
seus poderes e desejos. É isso mesmo que os interessados (titulares
de direitos autorais de música) querem? Discurso vazio, ou conversa fiada
de quem não conhece o assunto.
No regime associativo, a associação
é a polis, o local aonde se faz a política, se define o justo e o
verdadeiro e se produz significado para os termos. Os autores se reuniram há cerca de 150 anos, como consequência do humanismo revolucionário
que dominou o século dezenove e promoveu a construção de
significados que deram a certos termos o conteúdo necessário para a
elaboração dos conceitos que norteiam as sociedades de autores que
operam no mundo inteiro a gestão coletiva de direitos autorais.
Nesses quase dois séculos desenvolveu-se inteligência, conhecimento e capacidade de organizar, catalogar, armazenar, recuperar,
administrar, etc., os dados que as sociedades de autores produzem,
a respeito das obras e titulares que representam, sem os quais não
é possível monitorar e controlar a utilização das obras musicais.
As sociedades de gestão coletiva pertencem aos autores e demais
titulares de direitos autorais, portanto devem ser supervisionadas por eles. Os titulares devem se organizar na forma dos estatutos de
suas sociedades para formarem um corpo de supervisão, eleito de
tempos em tempos, que define, aponta e contrata o corpo operacional
que cuida da operação propriamente dita, presta contas ao corpo de
supervisão, mas não tem voto. Os titulares de direitos autorais podem até mesmo
fazer a revolução dentro de suas associações alterando seus
estatutos para que reflitam o entendimento dos que supervisionam a
organização à qual pertencem.
Assim se faz no mundo inteiro, sempre buscando formas de oferecer uma
gestão de melhor qualidade por custos menores, isto é, mais
eficiente e também mais transparente, por estar mais perto do
titular, do dono do negócio, desde que ele esteja disposto a dar
sua efetiva participação ao corpo de supervisão.
Essa possibilidade jamais foi debatida aqui. Não há espaço para o
diálogo e nem para o desenvolvimento de conhecimento e melhorias
para todos. Há apenas um pouco mais do mesmo.
O Senado Federal, com
aprovação da Câmara dos Deputados, enviou para a sanção
presidencial um Projeto de Lei que não tem qualquer indício de que
vai entregar aquilo que critica faltar no atual sistema que precisa
ser punido porque alega-se não possuir os atributos essenciais, especialmente a tão famosa "transparência".
Dizemos um
pouco mais do mesmo porque não passa de disputa de poder combinada
com a disponibilidade de alguns artistas famosos de participarem do
jogo político do governo brasileiro que carece de significado e
conteúdo, que se alimenta de si mesmo, vive para sua própria
sobrevivência, não sabe o que é o espírito público.
As consequências imediatas da votação em tempo recorde do PLS, sem
debate, sem diálogo, portanto, sem transparência, parecem óbvias. O
poder se transfere das mãos dos que hoje dirigem as associações que
integram o ECAD para as mãos dos que estiveram ao lado dos
políticos que não sabem o significado do termo diálogo no regime
democrático, artistas que, por sua vez, transferiram antecipadamente para o Poder Executivo, através do Ministério da
Cultura, os poderes conquistados nesse processo de votação em tempo
recorde.
Transferência de poder e autoridade também vazia de conteúdo, uma vez
que não dominam, ou nem sequer conhecem, um pouco da complexidade
da gestão coletiva, tanto é que proíbem a licença em branco
consagrada no mundo inteiro e determinam o uso de novos tipos de
licenças mais custosas e complexas, caminhando na contra mão da
tendência mundial.
Sociedades de autores, com o apoio de seus
associados se dedicam ao desenvolvimento de ferramentas para diminuir os custos
de transação e promover economia de escala. O caminho adotado pelo
PLS promove a mudança do controle da estrutura para as mãos do Poder Executivo, porém não propõe inovação alguma em benefício dos
criadores. Ao contrário, propõe mudanças que tornam a operação mais custosa,
restringem os direitos dos titulares e propõe critérios de licença
que certamente resultarão excludentes e restritivos pois provocarão
a diminuição do universo de titulares que poderá se beneficiar da
arrecadação e distribuição em conjunto de direitos de execução
pública de música.
Marisa Gandelman, doutora em relações internacionais, é diretora-executiva da União Brasileira dos Compositores (UBC).