O desencanto de FHC
Em recente entrevista ao Canal Livre, da TV Bandeirantes, o ex-presidente
Fernando Henrique lamentou a atitude sectária de Lula e do PT, ao tentar fazer
dele e do PSDB o bode expiatório das mazelas do país. “Passei a faixa
presidencial ao Lula com emoção”, disse FHC, supondo que uma parceria ali se
estabelecesse.
Deu-se o contrário. Já no dia seguinte à posse, José Dirceu, o “capitão do
time”, brandiu pela primeira vez o bordão da “herança maldita”, que se tornaria
peça de resistência da Era Lula.
Tudo o que não funcionava, tudo o que se revelava desastroso nas ações do
novo governo tinha dono: a herança maldita de FHC. Paradoxalmente, Lula mantinha
os fundamentos econômicos do governo anterior, incluindo nomes que haviam sido
sustentáculos daquele período, como o presidente do Banco Central, Henrique
Meirelles.
Fernando Henrique, com a bagagem que tem – e, sobretudo, com a íntima e
veterana convivência com o pensamento esquerdista -, não tinha direito a tanta
ingenuidade. Nada do que leu, ouviu ou observou poderia fazê-lo supor que o PT
admitisse a hipótese de alternância democrática no poder. Senão, vejamos.
Já na sequência do Plano Real, quando sua candidatura mostrou-se inevitável,
FHC convidou Lula para vice, na tentativa de estabelecer uma parceria que
vislumbrava de longo prazo, capaz de conduzir o país por décadas.
A simples proposta ofendeu Lula e o PT, que só a admitiam se a composição
fosse inversa: Lula na cabeça e FHC de vice. Sabiam que era impossível, pois a
vez era do Plano Real, que o PT havia combatido e ainda combateria por muito
tempo.
Mas ali ficou claro que o projeto do PT – um projeto revolucionário, ainda em
curso - não previa parceiros; no máximo, aderentes ou cúmplices.
Sem o apoio dos petistas, FHC, que não poderia governar apenas com o PSDB,
aproximou-se do PMDB e do PFL, numa guinada conservadora, provocando por parte
do PT – o mesmo partido que reabilitaria Fernando Collor, Renan Calheiros, José
Sarney e tantos outros progressistas - acusações de submissão “à direita”,
“traição ao povo” etc.
Mesmo bombardeado ao longo de seus dois mandatos, FHC, não se sabe por onde,
ainda nutria a expectativa de parceria com Lula. Tanto que chegou a dizer a José
Serra, candidato de seu partido em 2002, que “a vez agora é do Lula”. E,
visitado pelo candidato do PT em palácio, antes da vitória, apontou-lhe num
gesto a cadeira presidencial e disse: “Esta cadeira é sua”.
Ao receber a faixa presidencial, Lula retribuiu os rapapés com uma frase que
jamais poria em vigência: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo”.
No dia seguinte, o “amigo” viraria “herança maldita” e só voltaria a ser
procurado quando explodiu o Mensalão. FHC, como se sabe, foi quem sustou a
tentativa oposicionista de impor o impeachment a Lula.
Uma década depois, a herança maldita trocou de lado e tem novo dono: o
próprio PT, alvo dos protestos das multidões nas ruas. A diferença é que, do
outro lado – da oposição -, não há liderança sobre os manifestantes, que não se
identificam com nenhum partido. É um protesto multifacetado, que o PT, com sua
logística junto aos sindicatos e movimentos sociais, tenta cooptar.
Dilma Rousseff é o bode expiatório, tida pelos radicais como não
suficientemente esquerdista. Prepara, ainda que à sua revelia, o caminho de
volta de Lula, que, em sua primeira manifestação desde que as ruas foram
ocupadas pelos protestos, optou por incentivá-los, como se nada tivesse com
eles.
Há uma queda de braço nas ruas: de um lado, as forças organizadas de esquerda
- minoritárias, mas não inexpressivas -, que deflagraram o movimento, com
objetivos pontuais, de desgastar governantes de oposição; de outro, uma imensa
massa, que aderiu por razões sinceras e que vão muito além do aumento das
passagens de ônibus. É grande, mas desorganizada, sem meios de dar consequência
prática à sua insatisfação.
Lula, em cena, aposta na sua logística e já acusa a direita – mais
desarticulada e inorgânica que as massas – de responsável pelos atos de
vandalismo. Sabe que não é e sabe de onde vêm. Mas recorre ao velho estratagema
de Lênin para iludir a opinião pública: “Acuse-os do que você faz”.
Funciona.
No mesmo Canal Livre, sem mencionar a contribuição involuntária que
deu a tudo isso, FHC lamenta: “O Brasil está sem rumo”. É, parece que sim.
Ruy Fabiano é jornalista.
Transcrito do Blog do Noblat de 29/06/2013