Garrincha não pensa
Amigos, estou diante de um problema, que é o seguinte: — Garrincha foi,
há pouco tempo, meu personagem da semana. Poderei repeti-lo sem irritar os
leitores? Eis a verdade, porém: — não se trata de escolher, de optar. Ontem, só
houve em campo um nome, uma figura, um show: — Garrincha.
Os outros três
campeões do mundo estavam lá também. Mas Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem
à miserável condição humana. São mortais e suscetíveis de todas as
contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por um dever
contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas resistências
emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está acima do bem e do mal.
O problema de forma física e técnica não existe para ele, nunca existiu.
Como os três outros campeões mundiais do Botafogo, ele foi massacrado por
apoteoses consecutivas. Desde Brasil x Suécia que o “seu” Mané está em vigília
permanente. E, no entanto, vejam vocês: — apareceu em campo com uma disposição
vital esmagadora. Ninguém mais ágil, mais plástico, mais alado. Em campo, desde
o primeiro minuto, foi leve como uma sílfide.
O futebol era, nesta terra, um esporte passional, sombrio, cruel. O
torcedor já entrava em campo vociferando: — “Mata! Esfola!”. Ontem, porém, no
Botafogo x Fluminense*, sentiu-se uma curiosa reação: — Garrincha trazia para o
futebol uma alegria que começou dez dias depois da Copa da Suécia, durante os quais
os campeões do mundo foram submetidos a um festival de homenagens inédito.
Quando ele apanhava a bola e dava o seu baile, a multidão ria, simplesmente
isto: — ria e com uma saúde, uma felicidade sem igual. O jornalista Mário Filho
observou, e com razão, que, diante de Garrincha, ninguém era mais torcedor de A
ou de B. O público passava a ver e a sentir apenas a jogada mágica. Era,
digamos assim, um deleite puramente estético da torcida.
Aconteceu, então, o seguinte: — foi-se assistir a um jogo e viu-se
Garrincha. No fim, já as duas torcidas queriam apenas que Garrincha apanhasse a
bola e começasse a fazer as suas delirantes fantasias. Então, aplaudiam nas
arquibancadas, cadeiras e gerais, com uma euforia de macacas-de-auditório.
Por
exemplo: — o meu caso. Eu estava lá, como pó-de-arroz nato e hereditário, para
torcer pela vitória do Fluminense e contra a vitória do Botafogo. Súbito começo
a exultar também. Diante de cada jogada de Garrincha, eu experimentava a
alegria que as obras-primas despertam.
E, no entanto, vejam vocês: — chamavam este homem de retardado! Só agora
começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem o
homem normal, tão lerdo, quase bovino nos seus reflexos, com a instantaneidade
triunfal de Garrincha. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a
rua, ou chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo mental.
Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se
resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E, por isso
mesmo, chega sempre antes, sempre na frente, porque jamais o raciocínio do
adversário terá a velocidade genial do seu instinto.
No segundo tempo, quase não lhe deram bola. E aconteceu o inevitável: —
o Botafogo caiu verticalmente. O Fluminense podia ter empatado, até. Mas
ficamos num joguinho platônico, um futebol inofensivo, de passes para os lados
e para trás. Resta saber: — de quem é a culpa? De uma indigência de recursos
táticos? Ou faltou-nos um Garrincha, com suas penetrações fulminantes, as suas
geniais invenções? No primeiro tempo, botafoguenses e tricolores punham as mãos
na cabeça: — “Isso não existe!”.
Eu falei, mais atrás, que ele foi, na sua agilidade, algo de muito leve,
de muito etéreo. De fato, na etapa inicial, Garrincha deu uma bicicleta de
sílfide. Terminado o jogo, saímos do estádio com a ilusão de que tínhamos visto
não um jogo, não dois times, mas uma figura única e fantástica: — Garrincha, o
meu personagem da semana.
Nelson Rodrigues
*Botafogo 2 x 1 Fluminense,
10/7/1958, no Maracanã. O campeonato carioca
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Transcrito do site do Botafogo que por acaso é o time do meu filho e, por isso mesmo, o meu. MH
Sei que não vou agradar, mas para mim Garrincha foi melhor que o Pelé!!!!!!!
ResponderExcluirAbraçãooooooo
Jotajo
Aos dois devemos grandes alegrias, mas a de Pelé foi mais continuada... Não entendo nada de futebol, mas entendo de alegria do povo, que andava, como agora, necessitado de uma alegria sadia. MH
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